Buscando homenagear o grande São Jerônimo, o qual fez a primeira tradução da Bíblia Sagrada para o latim – a Bíblia Vulgata ou popular – a Igreja no Brasil, a 51 anos atrás, por meio da Comissão para a Animação Bíblico-Catequética, passou a dedicar o mês de setembro à leitura, ao estudo, à meditação e à oração da Palavra de Deus. Isso não significa que o povo cristão católico deva se debruçar sobre a Palavra Divina somente nesse mês, mas é como que um incentivo a criar verdadeiro amor às Letras Divinas.
No decorrer desses 51 anos de história, a Igreja Católica no Brasil apresenta um livro da Bíblia para que seja, como fora dito no parágrafo anterior, lido, estudado, meditado e rezado nas famílias, formações, encontros e afins. Para este ano de 2022, o escolhido foi o Livro de Josué, com o lema “O Senhor, teu Deus, estará contigo onde quer que vás.” (Js 1,9). Um recorte fascinante da vida do povo de Deus na concretização de uma das promessas do Senhor Deus – a Terra Prometida onde corre leite e mel (cf. Nm 14, 8).
Antes de adentrar nessa linda e emocionante história, convido você, caro leitor, cara leitora, a retornar um pouquinho nas páginas de sua Bíblia, até o livro de Gênesis, especificamente no capítulo 12. Peço-te isso para que possas ver uma das promessas que Deus faz a Abraão, nosso pai na fé, afinal de contas, o Livro de Josué irá narrar a concretização de umas das promessas decorrentes da Aliança celebrada entre Deus e Abraão. Feito isso, avance, avance com sede e vontade no poço límpido da Palavra Divina donde saem águas refrescantes e revigorantes para a vida de todo discípulo missionário do Divino Mestre.
Na história sagrada de Deus com a humanidade, Ele sempre se serve de pessoas humanas concretas na execução de seus planos, os quais estão, predominantemente, orientados ao bem viver e a salvação dos seus. Foi assim com Adão, Eva, Caim, Abel, Abraão, Sara e muitos outros. A história da humanidade é, por natureza, história de salvação. Sendo assim, independentemente dos percalços que aconteçam, seu telos, ou seja, seu fim último, não é outro senão a salvação integral da pessoa humana.
Concluída a travessia do deserto e se aproximando da tão sonhada Terra Prometida – Canaã – Moisés, o grande profeta, servo e amigo de Deus, completa sua trajetória sobre a terra e retorna ao seu Criador e Senhor, e por isso, o povo não pode ficar sozinho, sem um agente humano de estabilidade, governo e firmeza. Assim surge, mais evidente, “Josué, filho de Nun, o qual estava cheio de espírito de sabedoria, porquanto Moisés lhe impusera as mãos.” (Dt 34, 9).
Josué, cujo nome significa, Deus é salvação, será quem introduzirá e guiará, em nome de Adonai (Senhor Deus), o povo na Terra Prometida. Seu nome já indica sua missão: evidenciar, na história humana, a salvação de Adonai. Josué é o continuador da obra de Moisés, mais ainda, da obra de Deus. Para tanto é necessário frisar, dentre tantas características, a fidelidade da qual é dotado o servo Josué. Impecavelmente fiel a Moisés e a Deus, Josué será o grande líder de um povo na corrida pela conquista dos sonhos de Deus. Assim Deus falou a Josué: “Moisés, meu servo, morreu; agora, levanta-te! Atravessa este Jordão, tu e todo este povo, para a terra que dou aos israelitas. […] Ninguém te poderá resistir durante toda a tua vida; assim como estive com Moisés, estarei contigo, jamais te abandonarei, nem te desampararei.” (Js 1, 2.5).
Josué é homem de fidelidade a Adonai, pois não rompe com a Aliança. Escuta o que Adonai diz e transmite fielmente ao povo as orientações do Senhor. De igual modo, Adonai é fiel a Josué, não lhe abandonando, antes estando com ele e fazendo com que sua fama crescesse e fosse divulgada por toda a terra. (cf. Js 6, 27). A ligação de ambos é tão forte que o autor sagrado chega a afirmar que Deus obedeceu aos comandos de um homem (cf. Js 10, 12-15), fato este que ocorreu no socorro que Josué presta a Gabaon em uma peleja contra os cinco reis dos amorreus. É fiel a Moises, pois levou a termo a missão por ele iniciada ainda no Egito, recordando de seus ensinamentos e ações como bom amigo e servo de Deus. É fiel à comunidade dos israelitas, pois ao cumprir a termo a vontade de Adonai vai, com o povo, tomar posse de tudo o que o Senhor lhes prometera. É fiel aos seus pactos, como o fez com Raab, poupando-lhe a vida, bem como a vida de toda a sua casa na invasão a Jericó.
O posicionamento de Josué com os reis dos amorreus (cf. Js 10, 22-27) mostra uma pessoa corajosa, audaciosa e que é temida, não cruel, mas que se impõe para mostrar sua autoridade perante os inimigos do povo.
Na pessoa de Josué, vê-se o cumprimento da promessa de uma terra que fora jurada à descendência de Abraão, como bem narra o Livro das Origens: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma bênção.” (Gn 12, 1-2). Como, para Adonai, falar e fazer configuram-se em mesma realidade, tal promessa não caiu por terra, antes, foi realizada. Ademais, é necessário compreender que a Terra Prometida é muito mais que um simples lugar físico, ela alcança proporções teológicas escatológicas, pois sua conquista e permanência são sinais da fidelidade a Adonai e, ainda, aponta para a Jerusalém Celeste, a grande terra preparada para os que amam ao Senhor e a Ele são fiéis.
Nas palavras de CROATTO (1966) pode-se inferir que:
Se o Gênesis é o livro das promessas, o livro de Josué é o das realizações divinas. E se o êxodo presencializa o Deus dos Pais numa gesta maravilhosa de libertação, a posse da Terra Prometida enfecha um primeiro cilho de esperanças. Os Hebreus entram a gozar a Terra dos Pais, o país que mana leite e mel, por que (sic) é mais fértil e irrigado de chuvas do que o Egito e o deserto sinaítico. A bondade e a fidelidade de Deus acabam de associar-se um novo título de glória que será celebrado de geração em geração.
Contudo, para governar um povo, é necessário uma pessoa equilibrada, sábia e com autoridade. Josué foi esse homem. Ademais, sua autoridade não vem de si mesmo, antes, da fidelidade à Palavra de Deus. Ele é ouvido e obedecido, pois não fala de suas ideologias, mas da vontade de Deus para seu povo, vontade essa que se encerra no bem, na justiça e na vida de qualidade. Dessa forma, até em situações extremas, como na morte de Acã causada pela desobediência à lei do anátema, o povo obedece. Assim narra o autor sagrado:
Então Josué tomou Acã, filho de Zaré, e o fez subir ao vale de Acor, com a prata, o manto e a barra de ouro, com seus filhos, suas filhas, seu boi, seu jumento, suas ovelhas, sua tenda e tudo o que lhe pertencia. Todo Israel o acompanhava. Disse Josué: ‘porque trouxeste desgraça sobre nós? Que Iahweh, nesse dia, traga desgraça sobre ti.’ E todo o Israel o apedrejou e os queimou e os cobriu de pedras. (Js 7, 24-25).
Adonai é o protagonista. Ele dá a terra e Josué tem consciência desse fato maravilhoso. A conquista só é possível porque Adonai combate no lugar do povo. São muitos os momentos narrados por Josué que evidenciam tal fato, pois é Adonai quem combate; é Ele quem entrega os inimigos nas mãos de Israel, o qual deve tomar posse do que Adonai concede, como puro dom, dádiva, graça. Nos relatos do Livro, dois verbos são substancias na compreensão do todo: dar e tomar posse. Adonai não somente dá a terra, mas dá, também, toda condição para tomar posse e, ainda, dá-lhes tranquilidade, repouso, descanso.
Nesse interim, Josué se apresenta com um homem confiante na misericordiosa providência divina. Nas palavras de CROATTO (1966, p. 94): “A fórmula (sic) eu Eu vo-los entregarei (os inimigos) em vossas mãos parece um estribilho persistente e admoestador, ao longo de todo o livro de Josué. Ademais, para denotar a segurança do auxílio prestado por Javé e em ordem à sua celebração solene, certos fatos foram engrandecidos.”
Josué é mais do que uma pessoa concreta, mas alcança o patamar de lugar teológico da ação de Adonai, pois é Deus quem tudo faz. Na recordação da história feita por Josué, já em tempo de sua morte, evidencia-se: “Enviei vespas diante de vós, que expulsaram da vossa presença os dois reis amorreus, o que não deves nem à tua espada, nem ao teu arco. Dei-vos uma terra que não exigiu de vós nenhum trabalho, cidades que não construístes e nas quais habitais, vinhas e olivais que não plantastes e dos quais comeis.” (Js 24, 12-13).
O convite de Josué é olhar para a história no âmbito da fé. Não cabe comparar os relatos do autor sagrado com os fatos históricos das ciências, mas entrar na realidade vivencial de um povo que sofre as agruras do exílio babilônico. Olhar para Josué é enxergar a necessidade iminente de se tornar um povo fiel: a Adonai; a Moisés (seus ideais de justiça e seguimento ao Senhor); à comunidade israelita e às pessoas humanas.
Nesse processo, o passado é capaz de lançar luzes para o presente. A leitura e releitura da história no viés da fé é pressuposto máximo para encontrar em Josué a figura de identificação, não para uma pessoa que deveria se levantar para conduzir uma saída forçada do exílio, antes na identificação de um povo que pecou, sendo infiel a Adonai, e que agora sente os espinhos do pecado, principalmente da idolatria – o adultério do povo – rasgando suas carnes e dignidade.
Ademais, o Senhor é a salvação do seu povo e, mesmo sem o lugar para rezar (o templo), Deus faz do seu povo o lugar do culto, pois o santuário de Adonai é o seu povo. Diferentemente do que muitos poderiam imaginar e afirmar – que Deus lhes tinha abandonado – a história mostra o contrário: Adonai está onde seu povo está, pois Ele é fiel, sempre. Nesse ínterim, o relacionamento com Deus será exclusivo e excludente, pois não permite a entrada de outras religiões ou deuses, pois Adonai é um Deus ciumento (cf. Ex 20, 5) e não admite o adultério.
De forma concreta e veemente, Josué deixa claro para o povo que, tudo o que Deus prometera fora realizado. A fidelidade de Adonai para com suas promessas é inegável e a própria história é testemunha ocular de tais feitos. Adonai leva o povo à sua realização pessoal e comunitária; ao povo, cabe desatar as sandálias e reconhecer que “nas maravilhas históricas de Javé, o homem descobre o Deus da salvação” e que diante de tamanha manifestação salvífica do Senhor no grande cenário da história, “a fidelidade é a única resposta digna do homem.” (CROATTO, 1966, p. 101).
Por Marcio Antonio da Silva
Referências bibliográficas
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002
CROATTO, José Severino. História da Salvação: A Experiência Religiosa do Povo de Deus. 2ª ed. Caxias do Sul: Paulinas, 1966.