1ª LEITURA – Gn 3,9-15.20
O texto escrito no exílio retrata uma época de opressão semelhante à opressão sofrida pelo povo hebreu no Egito, sob o jugo do Faraó, como também a opressão babilônica. Que época é essa? É o tempo do reinado de Salomão. As histórias da árvore, do paraíso e da serpente são uma pesada crítica à absolutização do poder, do ter e do saber. Poder, ter e saber, quando absolutizados se tornam ídolos geradores de morte. Tudo isso é culpa da serpente. Por quê? Porque ela simboliza a autossuficiência humana. O homem autossuficiente acha que não precisa dos outros nem de Deus. Ele se basta a si mesmo, ocupa assim o lugar de Deus. No auge do seu orgulho, despojado de toda a graça de Deus, o homem percebe que está nu, por isso se esconde envergonhado e amedrontado. Sua autossuficiência estraga seu relacionamento com Deus e com o seu semelhante. Ignora a obediência e o serviço (vv. 10-11), por isso o homem acusa a mulher. A autossuficiência conduz à irresponsabilidade.
A mulher também não assume sua responsabilidade e joga a culpa na serpente. Se a serpente fosse apenas uma serpente (como quer afirmar uma interpretação fundamentalista da Bíblia), poderíamos fazer outros questionamentos infantis tais como: será que antes da maldição de Deus a serpente tinha pés? Um animal pode ser realmente o responsável por todo o mal no mundo, que chamamos de pecado? A interpretação fundamentalista é querer entender o texto do jeito que ele aparece, sem olhar o seu simbolismo. A interpretação fundamentalista é o modo errôneo das Igrejas Pentecostais e muitas Igrejas Protestantes, não históricas, interpretar a Bíblia, ensinando muita coisa errada ao povo.
Lembremos mais uma vez o simbolismo da serpente. Ela simboliza a autossuficiência humana, ou seja, o desejo do ser humano de ser igual a Deus. A serpente é, portanto, não um animal, mas o “espírito” da autossuficiência, que gera o mal e a morte na sociedade. Então, o que Deus está amaldiçoando mesmo por trás do simbolismo da serpente? É autossuficiência humana; é o homem colocar-se no lugar de Deus. É a idolatria, o orgulho humano levado ao absolutismo. Deus está amaldiçoando o pecado na sua radicalidade, que é a idolatria, pois, o homem abusando da sua liberdade, se sente capaz de dizer não ao seu Criador, coloca-se no nível de Deus e o desafia praticando o mal, contrariando a vontade do Criador. É por isso que a liturgia de hoje salta do v. 15 para o v. 20, onde se diz que o homem chamou sua mulher de “Eva”, porque ela se tornou a mãe de todos os viventes. Chamar é o mesmo que dar nome, ou ter domínio sobre a pessoa. Isto já é fruto do pecado, por isso o homem passa a dominar a mulher, ao invés de tê-la como companheira, como está claro no v. 12. Assim, temos o transtorno das relações humanas. Quando o homem domina a mulher, ele nega o que há de comum entre ele e ela, ou seja, o fato de ambos serem imagem e semelhança de Deus.
Depois da maldição da autossuficiência e do orgulho, fonte de todo pecado, aparece no v. 15, o que os estudiosos chamam de protoevangelho – uma pérola do Segundo Testamento embutida no Primeiro. Uma espécie de anúncio evangélico antecipado no Primeiro Testamento. Depois que o texto diz que Deus põe inimizade entre a “serpente” (=autossuficiência humana) e a mulher (criada à imagem e semelhança de Deus); depois disso, vem está linda frase para corrigir tudo o que houve de errado no mundo: “Esta (a descendência da mulher, isto é, Jesus) te ferirá a cabeça e tu (“a serpente” = autossuficiência humana) lhe ferirás o calcanhar”. Este trechinho significa que Jesus (= a descendência da mulher = Maria – a mãe de Jesus) com seu mistério da encarnação, paixão, morte e ressurreição vence a serpente, a autossuficiência humana e restaura com sua graça a dignidade humana perdida – sua imagem e semelhança com Deus, dando-lhe nova chance de habitar o paraíso perdido. É a Boa Nova do Reino.
2ª LEITURA – Ef 1,3-14
Esta carta, atribuída ao grande apóstolo Paulo, é uma espécie de carta circular, dirigida às comunidades da Ásia Menor. Ela poderia ser dividida em duas grandes partes: A primeira seria uma parte doutrinal – capítulos 2-3. Já a segunda, uma parte de exortações morais – capítulo 4-6.
Nosso texto começa bendizendo ao Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, em Cristo, nos cumulou com toda espécie de bênçãos; é um hino de louvor, composto de seis bênçãos, se o prolongarmos até o versículo 14. Em síntese, o Pai nos abençoou em Cristo com a eleição (v. 4), a predestinação (vv. 8-10), a redenção (v. 17), a recapitulação (vv. 8-10), a herança (vv.11-12) e o Espírito Santo (vv. 13-14).
A 1ª e a 2ª bênçãos são a eleição e a predestinação. Deus nos escolheu, antes da criação do mundo para sermos santos e sem defeitos no amor. “Santos e sem defeitos” é referência aos sacrifícios judaicos, cujas vítimas não podiam ter manchas ou defeitos. Fomos destinados a ser “filhos adotivos”. O Filho é sempre da mesma natureza do Pai. Assim é Jesus. Mas nós não somos da mesma natureza de Deus. Deus é divino, nós somos humanos, entretanto, Deus nos adotou como filhos em Jesus Cristo, por isso somos filhos adotivos. A finalidade é o “louvor e a glória da própria gratuidade da ação divina”.
A 3ª bênção é a redenção, através do sangue de Cristo que nos liberta da escravidão do pecado.
A 4ª bênção é a realidade do projeto de Deus – a recapitulação: “Fazer a unidade de todas as coisas em Cristo, as que estão no céu, e as que estão sobre a terra”. Este é o mistério da vontade de Deus que, na plenitude dos tempos, nos foi revelado em Jesus Cristo.
A 5ª e a 6a bênçãos (vv. 11-14) dizem respeito aos judeus, que já tinham parte na herança divina e aos gentios que são incorporados ao povo de Deus e marcados pelo Espírito, garantia desta herança.
EVANGELHO – Lc 1,26-38
O pequeno grande-anúncio evangélico de Gn 3,15 (1a leitura) vai ser agora plenamente revelado em Jesus Cristo. Também o mistério das bênçãos amorosas do Pai, lembradas na Segunda Leitura, tem início com o sim da Imaculada Virgem Maria como resposta ao anúncio do anjo Gabriel. Em Jesus, o Filho da Virgem Imaculada, o povo vai ver realizadas suas esperanças. As bênçãos aconteceram e o Mistério do Reino foi revelado sobre nós. No texto de hoje temos:
Primeiro: o envio do anjo Gabriel a uma jovem chamada Maria, na Galileia, terra de marginalizados. O anjo de Deus é enviado não a Jerusalém, a capital, mas a Nazaré, de onde não se esperava nada de bom (cf. Jo 1,46). Aliás, a cidade de Nazaré era praticamente desconhecida no Primeiro Testamento. São os mistérios de Deus, que vão se realizando à revelia da prepotência e autossuficiência humanas. São os empobrecidos e excluídos da sociedade que são os escolhidos de Deus. Maria estava noiva de José. Para os judeus o noivado já é, juridicamente, matrimônio. Mas a convivência matrimonial só acontecia um ano depois dos esponsais. O compromisso já estava feito, mas, quando do anúncio do anjo, Maria não convivia com José, daí a pergunta de Maria no v. 34: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem?” Maria vai, portanto, conceber Jesus antes de ir morar com José. É o que chamamos de concepção virginal. Pelo fato de Maria já estar comprometida legalmente com José, Jesus pode ser considerado, do ponto de vista legal, filho de José e descendente do rei Davi. Maria estava noiva de José que era descendente de Davi.
Segundo: O anjo, acabando com os preconceitos de não se poder dirigir a saudação a uma mulher, saúda Maria, convidando-a a alegrar-se, pois o Senhor está com ela e ela está repleta dos favores de Deus. A alegria dos tempos messiânicos já começa a aparecer. O Messias, o continuador da dinastia de Davi, nascerá do seio de Maria, e seu reino não terá fim. As profecias referentes ao Messias vão se realizando. No caso aqui: a profecia de Natã (cf. 2 Sm 7,1-5.8b-12.19a.25-26).
Terceiro: Maria pergunta como isso vai acontecer e o anjo responde que é pelo poder do Espírito Santo que ela conceberá. É interessante observar a atitude de Maria. É muito mistério para uma simples e humilde menina de Nazaré. Por isso, Maria se perturba, parece ter medo e faz a pergunta. Mas, nessa pergunta, não há nenhum resquício de dúvida. É que o Mistério do Altíssimo é grande demais. Maria não entende nada do que está acontecendo, mas acolhe com o coração aberto o mistério do amor de Deus. Deus mostra a independência e a liberdade do seu agir na história. José não tomará parte na gravidez de Maria, mas assegurará legalmente a filiação davídica de Jesus, pois ele é descendente de Davi. Jesus é assim filho de Deus e filho de Maria. Não tem pai humano, apenas mãe. Para mostrar que para Deus nada é impossível, o anjo revela a gravidez de Isabel, que era estéril e já estava no sexto mês.
Quarto: é o sim de Maria. Sim, significa crer; crer significa confiar apesar da obscuridade. “É uma atitude que exige pobreza interior, desapego das próprias seguranças, liberdade para o novo e o inaudito”. Maria se coloca como a serva. Serva com toda liberdade. Serva aqui não significa escrava, pois “Deus não quer escravos, mas livres. Por isso não invadiu o seio de Maria; pediu licença e ofereceu sua proposta de salvação”. No Sim de Maria a vemos como modelo para todos os que creem. Ela está inteiramente a serviço da Palavra de Deus. Podemos dizer a serviço da Palavra que anuncia tempos novos, que gera uma sociedade nova. Maria está a serviço da Palavra que se fez carne; está a serviço de Jesus. A novidade do Reino só acontecerá se nos colocarmos a serviço de Jesus. Mais tarde, Maria vai nos revelar os segredos do Reino = “Fazei tudo o que ele vos disser!” (cf. Jo 2,5).
Dom Emanuel Messias de Oliveira
Bispo diocesano de Caratinga