1ª LEITURA – Ap 7,2-4.9-14
Nosso texto pertence à última parte da seção dos selos, que ocupa os capítulos 6 e 7. O capítulo 7º é um clarão de força salvadora de Deus, uma injeção de ânimo para a caminhada. Diante da situação calamitosa da humanidade (6,1-8 = abertura dos quatro primeiros selos) e do grito dos mártires (6,9-12 = abertura do quinto selo). Deus intervém para julgar os ímpios (6,13-17) com a abertura do sexto selo. O capítulo sétimo é uma pausa, onde o autor apresenta a salvação dos justos, dos eleitos de Deus. A pergunta de 6,17: “quem poderá ficar em pé?” encontra no capítulo sétimo sua resposta. A salvação é impossível ao homem, mas para Deus nada é impossível.
1º Momento uma referência ao passado – 7,1-8
O autor tem presente o recenseamento dos hebreus no deserto (Nm 1,20-43). O v. 1 mostra a proteção de Deus. A marca na fronte indica a salvação. Os marcados são 144 mil. Este número não pode ser interpretado ao pé da letra. Ele é simbólico e aponta para a totalidade de 12 (12x12x1000=144.000), todo o povo de Deus do Primeiro Testamento – 12 tribos; como também todo o povo do Segundo Testamento – 12 apóstolos. O nº 12 é símbolo da totalidade. O número 1000 simboliza uma grande multidão. Aqui temos totalidade vezes totalidade, vezes uma grande multidão. Este número pode indicar a largura da misericórdia divina, salvando a totalidade dos eleitos.
2º Momento uma referência ao presente/futuro da comunidade cristã – vv. 9-17
O v. 9 esclarece que o nº 144 mil é um número simbólico e não apenas o resultado exato de uma multiplicação. As seitas fundamentalistas, que acham que apenas 144 mil são salvos, caem no ridículo diante do v. 9. O número dos que serão salvos será incontável. Expressões que se referem à salvação aparecem aqui com fartura: “de pé” é sinal salvífico (não serão julgados); “vestes brancas” (simbolizam a vitória, a salvação); “palmas nas mãos” (vitória). Todos reconhecem que a salvação vem de Deus através da cruz de Cristo – o Cordeiro. Os versos 10 e 11 traduzem a adoração e o louvor de todos os que foram salvos, juntamente com todos os anjos, com os 24 anciãos (podem ser os representantes do povo santo do Primeiro e do Segundo Testamento: 12 tribos + 12 apóstolos), e os 4 seres vivos (símbolo do que há de mais perfeito na criação em força e ciência). Os vv. 13 e 14 desvendam o mistério sobre “os que estão trajados com vestes brancas”: “são os que vêm da grande tribulação; lavaram suas vestes e alvejaram-nas com o sangue do Cordeiro”. O sangue simboliza a eficácia da morte de Jesus. O povo das comunidades pode assim descobrir seus mártires e santos, que derramaram seu sangue por Jesus, na resistência contra o mal representado pelo Império Romano perseguidor. O Apocalipse é assim uma injeção de ânimo para que os cristãos de todos os tempos lutem até o fim para não deixarem que o bem – o projeto de Deus – seja abocanhado pelo anti-projeto do mal, encarnado nas injustiças e perseguições de pessoas e instituições.
2ª LEITURA – 1Jo 3,1-3
Vamos analisar este trecho da carta de João à luz das bem-aventuranças, da sexta e sétima (Mt 5,8-9): “Felizes os puros no coração, porque verão a Deus” (sexta bem-aventurança – cf. 1Jo 3,3); “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (sétima bem-aventurança – cf. 1Jo 3,1-2).
Como pano de fundo da 1ª carta de João, lembramos a crise da comunidade provocada pelos dissidentes carismáticos, que achavam que a salvação não estava na prática da justiça à imitação de Jesus, que deu a vida por nós, mas num conhecimento religioso especial e pessoal. Negavam Jesus como Messias, achavam-se livres do pecado, iluminados por Deus e se gloriavam de conhecer e amar a Deus, mas sem dar importância ao amor ao próximo. Por isso o autor se preocupa com algumas afirmações básicas como a purificação através do sangue de Jesus. (cf. 1,7-9), a consciência de sermos pecadores (cf. 1,8; 2,2); a importância de guardarmos os mandamentos e andarmos como Jesus andou (cf. 2,4-6); a importância de confessar o Filho e não negar que Jesus é o Cristo-Messias (cf. 2,22-23; 5,1); a importância do amor ao próximo (cf. 3,11.14.23; 4,7ss); etc.
O texto de hoje pertence à seção cujo tema é: “viver como filhos de Deus” (cf. 2,29-4,6). Já temos a afirmação da prática da pertença como combate do autor ao espiritualismo vazio dos carismáticos. Praticando a justiça nascemos de Deus e assim podemos ver a maior prova de amor que o Pai nos deu: “sermos chamados de filhos de Deus e o sermos de fato” (v. 1). Para Jesus, na 7ª bem-aventurança (evangelho de hoje – cf. Mt 5,9), isto é concedido aos que promovem a paz. Uma paz verdadeira é bem estar que exclui injustiça e opressão. Supõe, portanto, a fé traduzida em obras, uma fé no único Pai de todos, que nos ama através do amor do Filho, que, vivendo e morrendo por nós, nos concedeu a graça da filiação divina. Somos, portanto, todos irmãos com a obrigação do amor mútuo. Mas nós estamos no mundo que desconhece a Deus, desconhece seu Filho e, portanto, também não nos conhece (v. 1). O mundo cultiva o ódio e nos impede de ver a Deus. O mundo, portanto, na sua impureza, obscurece a nossa visão e dificulta o nosso ser cristão. Na verdade, a nossa realidade de filhos está escondida em Cristo (cf. Cl 3,3-4). Quando Cristo se manifestar também a nossa realidade de filhos se manifestará, e aí seremos semelhantes a ele, pois o veremos tal como ele é (v. 2). A 6ª bem-aventurança afirma que os puros de coração verão a Deus. Ser puro de coração é ter uma conduta pautada na justiça e no amor. Aqui, no último versículo, está afirmado que nós nos purificamos a nós mesmos na força da esperança de vermos a Deus tal como ele é (v.3).
Sintetizando, para vivermos a realidade de filhos, ou seja, vermos a Deus ou partilharmos de sua vida, precisamos de uma fé sólida, uma esperança firme e um amor profundo aos irmãos.
EVANGELHO – Mt 5,1-12a
Estamos no início do grande “Sermão da Montanha” (Mt 5-7). Para quem Jesus fala? Para multidões numerosas vindas de vários lugares (cf. 4,25). E essas multidões são compostas de gente simples, pobres, aflitos, perseguidos, famintos. Jesus sobe a montanha e se assenta. A montanha lembra o Sinai, onde Deus tinha feito, através de Moisés, aliança com seu povo. Assentado, Jesus assume o papel de Mestre e legislador da Nova Aliança, numa aproximação muito grande com seus discípulos. No Sinai a distância era grande entre Deus e o povo. Aqui, o clima é de total confiança e aproximação. Inclusive, aqui, não há leis, há sim propostas de felicidade. Jesus proclama seus ouvintes um povo feliz, bem-aventurado e lhes promete as alegrias do Reino.
Duas bem-aventuranças (a 1ª e a 8ª sintetizam as outras. A 1ª é: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus” (v. 3). A 8ª é: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus”. As outras bem-aventuranças não são mais do que esclarecimento dessas duas. A promessa da 1ª e da 8ª é a mesma e é uma constatação diferente: o Reino dos céus é deles (verbo no presente). As outras trazem uma promessa futura (verbo no futuro).
Na 1ª bem-aventurança, os pobres são os injustiçados que depositaram sua confiança em Deus. São considerados pobres em espírito, porque estão abertos para participar do projeto de Deus, que é a construção da nova sociedade, baseada na justiça e na igualdade – isso é o Reino de Deus.
A 8ª bem-aventurança tem muito a ver com a primeira, pois os que são perseguidos por causa da justiça são os mesmos pobres em espírito. Eles buscam uma sociedade alternativa através da partilha e da solidariedade, através da luta pela justiça e melhores condições de vida para todos. Isto, porém, não é tolerado pela sociedade estabelecida, que sentindo-se ameaçada, parte para a perseguição.
Quem são os pobres e qual é a situação deles?
A 2ª, a 3ª e a 4ª bem-aventuranças vão explicar a 1ª e a 8ª; vão dizer quem são os pobres. São os mansos, os aflitos e os que tem fome e sede de justiça. A 2ª indica quem são os mansos: são os que foram amansados pelos poderosos, que até lhes caçaram os direitos; mas eles herdarão a terra. A mansidão é uma atitude de quem é pobre. Eles são injustiçados, mas não partem para a violência. A 3ª diz quem são os aflitos: são pessoas cativas e aprisionadas, vítimas da sociedade cruel e opressora, mas Deus as consolará, libertando-as. A 4ª revela quem são os que têm fome e sede de justiça: são aqueles que não podem viver (fome e sede) na atual situação de desigualdades e injustiças sociais. Eles lutam pela sobrevivência. Sua luta é justa e eles serão saciados. A situação dos pobres é de extrema miséria, injustiça e opressão.
Qual é a meta dos pobres?
As bem-aventuranças 5ª, a 6ª e a 7ª vão mostrar que os pobres querem construir a nova sociedade.
A 5ª afirma que os pobres são misericordiosos, são solidários e querem colocar tudo em comum. Deus reparte com quem reparte. A 6ª afirma que os puros de coração verão a Deus. O coração é a sede das opções profundas. Os pobres são puros de coração, ou seja, suas opções estão em sintonia com o Reino, são íntegros e honestos com os outros. A 7ª diz respeito aos que promovem a paz. Paz (shalom) é a plenitude dos bens, é exclusão da injustiça, da opressão e da violação dos direitos. Paz, aqui, é mais social do que pessoal. Serão chamados filhos de Deus os que lutam pelo bem comum, pelo bem- estar de todos.
O conflito na comunidade – 9ª bem-aventurança.
Esta última bem-aventurança é diferente das outras. Ela é mais desenvolvida, enquanto as outras são escritas na 3ª pessoa, esta está na 2ª pessoa com recomendações diretas aos discípulos. No fundo, ela quer revelar as tensões e conflitos enfrentados pela comunidade dos evangelistas. A comunidade sofria injúrias, perseguições e calúnias, por causa de Cristo. O evangelista busca em Jesus uma força e um incentivo na caminhada. O v.12, de fato, afirma; “Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus. Pois foi deste modo que perseguiram os profetas que vieram antes de vós.”
Dom Emanuel Messias de Oliveira
Bispo Emérito – Diocese de Caratinga