Nas vésperas do Natal do Senhor, dia 24 de dezembro, nossa tradição julimariana celebra a morte, digamos melhor o trânsito, a passagem do Servo de Deus Pe. Júlio Maria De Lombaerde deste mundo para a órbita de Deus. Aqui vale uma expressão carregada de sentimento filial, mas, sobretudo, de um olhar espiritual da Irmã Lúcia Costa, SDN, que resume tudo o que foi nosso pai-fundador: “Quem nasce para ser eucaristia, vive e morre sendo eucaristia”[1]. O sentido do morrer do Pe. Júlio Maria tem essa verdade anunciada por essa religiosa. Sua morte foi uma expressão de toda a sua vida entregue nas mãos de Deus e em favor da Igreja e de seu povo.
São 80 anos deste acontecimento que marcou não só a família julimariana, mas a Igreja Católica no Brasil. É necessário fazer memória das inúmeras correspondências recebidas pelo jornal “O Lutador” a partir do comunicado do falecimento do Pe. Júlio Maria. Aquele que fora durante 16 anos o cabeça, a boca, o coração e os pés deste jornal encontrava-se agora em sua câmara ardente ladeado por seus religiosos, religiosas e por seus paroquianos. Era o momento do adeus ao pai-fundador e pastor de tanta gente. Os Bispos, os padres e todo o povo expressaram seu pesar por este fatídico acontecimento.
No trânsito dos grandes místicos e santos da Igreja, em geral temos um cenário sombrio dos seus leitos de dor e de morte. No caso de fundadores de congregações religiosas temos a comunidade reunida em torno do agonizante. Ela sofre e chora com seu pai espiritual, vive cada desfalecimento e kenosis. É um morrer comunitário. O grupo faz o processo da passagem junto ao seu guia. Se o moribundo está lúcido são recolhidas suas últimas palavras e seus pedidos, como um testamento espiritual. Estas palavras são transmitidas por via oral e mais tarde são registradas nos anais da história daquela família religiosa. Já o trânsito dos mártires, principalmente daqueles do primeiro milênio cristão, é assistido ou acompanhado à distância com muita dor e pesar. Não há tempo para palavras ou para expressar afeto da comunidade. O que fica é o testemunho fiel daquele que heroicamente não renegou sua fé, mas com coragem e valentia deu razão do seu crer. Isso depois torna-se um fator de crescimento e fortalecimento da fé da comunidade.
O trânsito do Pe. Júlio Maria dá-se de modo repentino. Não se esperava por esse momento tão cedo. Ele era um sacerdote idoso, com seus 66 anos de idade, mas com intensa fecundidade: escrevia artigos para o jornal “O Lutador”, elaborava livros, orientava seus religiosos e, por sua vida, palavra e testemunho, animava a vida da Paróquia Bom Jesus de Manhumirim. Pe. Júlio acompanhava suas construções e associações para que tudo saísse da melhor forma possível. Ainda: tinha uma fome missionária. Da mesma forma que o apóstolo São Paulo, queria que suas congregações se espalhassem por toda parte do mundo. Nessa prece tirada dos Suspiros à Maria Santíssima ele diz: “Suscitai, pois, uma legião de apóstolos desapegados e puros que, com a cruz no peito e o rosário nas mãos, proclamem em toda parte vossas grandezas e vosso amor”. Por aqui é possível ver seu coração missionário transbordante. Sua saúde era boa, não tinha nenhum mal a ser tratado. Tudo ocorria dentro da normalidade, tanto para ele como para seus seguidores. Às vezes os ânimos se exaltavam por causa dos embates com seus opositores, mas era uma situação já prevista.
Uma das últimas aquisições do Pe. Júlio Maria foi a fazenda São José, no distrito Vargem Grande, hoje Distrito Pe. Júlio Maria, na cidade de Alto Jequitibá. Ele gostava de ir para a fazenda com seus religiosos para passear ou descansar. Segundo os missionários sacramentinos da primeira hora, o Pe. Júlio Maria tinha o projeto de terminar seus dias neste espaço, no silêncio e no espírito de oração.
No dia 21 de dezembro de 1944 o Pe. Júlio Maria foi a Vargem Grande com o objetivo de demarcar o local para a construção de uma capela dedicada a Santo Antônio. E assim o fez com seus religiosos: escolheu e marcou o lugar onde deveria ser construída a Igreja. Passados três dias, Pe. Júlio Maria retorna a Vargem Grande para celebrar as vésperas do Natal com essa comunidade. E na volta para Manhumirim dá-se o inesperado: o acidente automobilístico que vitimou o Pe. Júlio Maria.
Pe. Demerval Alves Botelho, SDN, numa narrativa emocionante, descreve o acidente a partir das pessoas que estavam junto com o Pe. Júlio Maria neste momento sinistro: “O automóvel, perdendo o apoio na terra, virou-se de lado, pela direita, e depois de ter dado meia volta em dois baques e duas quedas, chocou-se contra uma árvore. Emborcando, com as rodas para cima, ficou imobilizado. […] O Padre Superior ficou com o corpo meio atravessado, recebendo sobre seu peito o encosto do assento central, e consequentemente, todo o peso do automóvel. Ficou imprensado pelas costas por um dos ferros superiores da capota, tendo a cabeça presa entre os outros ferros laterais. A capota apoiou-se sobre uma pedra, e esta lhe oprimia também o peito. Humanamente, não foi possível retirá-lo com vida. Quanto mais se levantava o carro, mais ele escorregava sobre o corpo do Pe. Júlio e o esmagava. […] Ele, o Pe. Júlio Maria com voz muito fraca, porém audível, murmurou: Aí! Aí! Aí! Pe. José! Pe. José! E, ao balbuciar estas palavras, lágrimas corriam-lhe pela face. E, suspirando, continuou: Tantos filhos! Tantos filhos! E nenhum para me acudir! […] Então, de olhos fechados, lento e confiantemente invocou a sua celestial rainha. Aquela que durante toda a vida, fora seu talento e sua esperança. […] Calou-se e rendeu o espírito” [2].
“Nós somos como azeitonas, diz-nos o Talmude: só quando somos esmagados é que produzimos o que há de mais valor”[3]. O trânsito do Pe. Júlio Maria pode ser interpretado a partir deste ensinamento. O Pe. Júlio Maria, na simbologia da produção do azeite, foi como o fruto da oliveira que só após o processo de entrega total de si oferece à Igreja o azeite: As missões realizadas na África, na Europa e no Brasil, a vasta biblioteca e missivas escritas por ele, as congregações fundadas, a animação missionária do povo, as escolas abertas por ele, o abrigo para os idosos, o patronato para as crianças, o hospital para o cuidado daqueles que se encontram enfermos…
No momento de sua passagem deste mundo para a eternidade, em meio à dor e ao sofrimento, nosso missionário belga, ali amolgado pelo peso do carro, assemelha-se à azeitona, sendo esmagada para a produção do azeite. Assim foi toda a vida do Pe. Júlio: Um ato de ofertório, de entrega, de doação de si a Deus para o bem da Igreja e de todas as pessoas. E agora, no final de sua vida ofertava, o último azeite que produzia e exalava para todos: a santidade feita dádiva.
Pe. Marcos Antônio Alencar Duarte, SDN
[1] Jornal Semente, edição Novembro/dezembro de 2004.
[2]BOTELHO, Missão Cumprida, pp. 30-36.
[3]HALIK, A noite do confessor – A fé cristã no mundo de incerteza, p. 200.