Iniciou-se no dia 22 de janeiro, o 33º Curso para os Bispos do Brasil, oferecido pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, no Centro de Estudos do Sumaré. Realizado desde 1990, este ano os estudos se concentram em torno do tema: “Antropologia integral e a crise da cultura atual: reflexões, consequências e encaminhamentos”.
O curso foi iniciado com Santa Missa, presidida pelo arcebispo de Uberaba (MG), Dom Paulo Mendes Peixoto e, entre os concelebrantes, o bispo eleito de Caratinga (MG), Dom Juarez Delorto Seco, e o bispo de Barra do Piraí e Volta Redonda (RJ), Dom Luiz Henrique da Silva Brito.
Na cerimônia de abertura, realizada no auditório do Centro de Estudos do Sumaré, o arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani João Tempesta, saudou os mais de 80 bispos inscritos, vindos de várias regiões do Brasil, e ressaltou que “a importância de tratar do tema da antropologia nos tempos atuais nos remete à necessidade de um aprofundamento sobre quem é o homem, para somente então nos debruçarmos sobre as crises que nos cercam em tantos setores da sociedade”.
A abertura contou também com uma palavra do organizador do curso, o bispo auxiliar do Rio de Janeiro Dom Joel Portella Amado, que agradeceu a numerosa adesão dos bispos, e uma partilha do bispo emérito do Rio de Janeiro Dom Karl Josef Romer, que organizou, a pedido do Cardeal Eugenio de Araujo Sales, o primeiro Curso para os Bispos, em 1990, e sucessivamente até os últimos anos.
Foi apresentado também o site oficial do curso pelo padre Rafael dos Santos, no qual podem ser consultadas as informações desta e das edições passadas (
https://www.cursoparaosbispos.org/).
Cardeal José Tolentino Mendonça
‘Faz parte da missão da Igreja privilegiar o exercício do diálogo’
Na manhã de terça-feira, 23 de janeiro, o Curso para os Bispos começou com Santa Missa presidida pelo prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, Cardeal José Tolentino Mendonça.
Em sua homilia, Dom José Tolentino falou da necessidade de que o homem tenha um ponto de centralidade, a partir do qual possa conduzir os eixos dos vários âmbitos da vida.
“A Igreja é muito desafiada pelo Papa Francisco a partir claramente do centro que é Cristo”, destacou o cardeal. “E se nós nos tornarmos todos mais cristológicos, com maior capacidade de partir de Jesus em cada dia, a Igreja vai transparecer verdadeiramente como seu sacramento, como seu sinal, como sua presentificação na história de cada um dos nossos irmãos e na grande história.”
Privilegiar o exercício do diálogo
Após a celebração eucarística, abrindo o ciclo de conferências da 33ª edição do Curso para os Bispos, que trabalha com a temática: “Antropologia integral e a crise da cultura atual”, Cardeal José Tolentino apresentou para um auditório repleto de bispos de todo o Brasil a conferência “Mudança de época: crise e oportunidade para o Evangelho”.
Ele chamou a atenção para a diferença entre tecnologia e tecnocracia. Enquanto aquela seria um exercício humano da técnica guiado ainda pelo conhecimento científico, esta seria o poder que a tecnologia hoje exerce sobre o ser humano e onde conhecimento científico não é só o motor externo do desenvolvimento técnico, mas torna-se uma função intrínseca da própria tecnologia.
A partir dessas definições, Dom José Tolentino desenvolveu uma intensa reflexão acerca da metamorfose progressiva da condição humana que, no mundo contemporâneo, a partir da evolução científica, se mistura com as máquinas e com os mecanismos da tecnologia da informação.
“No horizonte do transhumanismo”, destacou o Cardeal José Tolentino, “pela primeira vez na história da Humanidade a biologia passa a interagir intimamente com a tecnologia, propondo-se como um corretor da biografia humana. O transhumanismo pretende ser uma versão melhorada do corpo humano, introduzindo ajudas que já não são externas, mas internas. O ser humano renuncia a ser o seu próprio corpo, limitando-se a ter um corpo.”
Diante do surgimento de novas tecnologias, como a Inteligência Artificial, e do uso imoral que delas pode ser feito, o Cardeal José Tolentino recordou o antídoto da “promoção do pensamento crítico” indicado pelo Papa Francisco. “O sentido ‘crítico’ é constitutivo da fé cristã”, recordou o prelado.
“Na verdade, a crise reside no cromossomo do cristianismo. Foi – já há dois mil anos – não apenas um espectador, mas a causa do declínio do mundo antigo: a primeira grande mudança de época que o próprio cristianismo começou. A partir desse momento, a crise nunca mais deixou de acompanhá-lo, desencadeando uma sucessão de outonos e primaveras. A fé pode entrar em crise, certamente. A era da secularização grita isso sem muita cerimônia. Mas também a fé cristã deve constituir uma causa de crise, e questionar e transformar continuamente os sistemas sociais e culturais onde vive. Se não provoca crise, isto é, se não leva ao discernimento evangélico da realidade, desacelera, e deixa de testemunhar a fala do que está sentado sobre o trono: «Eis que faço novas todas as coisas» (Ap 21:5).”
Se já não vivemos mais numa era de fé homogênea, destacou o Cardeal José Tolentino, também já não estamos mais no tempo em que o ateísmo parecia reclamar uma espécie de superioridade cultural. Nesse mundo de possibilidades a redescobrir, será missão da Igreja “privilegiar o exercício do diálogo.”
Cultura do diálogo
Na manhã de quarta-feira, dia 24 de janeiro, o Cardeal José Tolentino deu continuidade à temática iniciada em sua primeira conferência, refletindo sobre “A cultura do diálogo como serviço da Igreja Sinodal”.
O prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação chamou atenção para o fato de que “a convicção reencontrada de que todos os batizados são discípulos e missionários, corresponsáveis na vida e na missão da Igreja, compromete internamente o conjunto da comunidade com o «diálogo fecundo de carismas e ministérios para o serviço do advento do Reino», e externamente a projeta no «diálogo com o mundo»”.
Apresentando Jerusalém e Atenas como dois modelos culturais representados nos Atos dos Apóstolos, Dom Tolentino ressaltou a figura de São Paulo que, sendo naturalmente mais próximo do modelo de Jerusalém, paradigma de um corpo antropologicamente coeso e homogêneo, percebeu a urgência do diálogo e do encontro ao desembarcar em Atenas, modelo cultural poliédrico, dialogante com componentes heterogêneos.
Seguindo para uma análise da temática do diálogo no magistério do Papa Francisco, o Cardeal José Tolentino elencou pontos de documentos, como “Evangelii Gaudium” e “Fratelli Tutti”, para demonstrar que essa é “uma das categorias essenciais do seu magistério”. E concluiu sua fala referindo-se expressamente ao exercício do ministério episcopal: “se existe um perfil de bispo necessário para o mundo contemporâneo, é aquele capaz do magistério sinodal do diálogo”.
O mistério de Cristo: identidade profunda do ser humano
O bispo auxiliar do Rio de Janeiro Dom Joel Portella Amado, um dos conferencistas do Curso para os Bispos de 2024, teve sua primeira participação no dia 22 de janeiro, quando abordou o tema: “Subjetividade aberta e antropologia integral: o ser humano à luz da teologia sistemática”.
Dom Joel trouxe para os bispos presentes no auditório do Centro de Estudos do Sumaré importantes questões acerca da reflexão teológica sobre o ser humano, buscando compreender quem é o homem diante de si, dos demais, do restante da criação e de Deus.
Expondo pontos importantes de antropologia teológica, Dom Joel Portella destacou a centralidade do conceito de pessoa: “a partir das contribuições da patrística e da teologia medieval, podemos identificar uma característica que consiste em reconhecer que cada ser humano existe em si, possui um valor que brota de sua própria existência, anterior ou independentemente de qualquer outra condição. Para essa característica, utilizamos o termo pessoa, acrescentando o adjetivo humana – pessoa humana – para evitar qualquer tipo de erro na aplicação do conceito”.
A partir das categorias teológicas expostas, Dom Joel apresentou três indicações pastorais como resposta. Primeiro, os ensinamentos do Papa Francisco, centrados na perspectiva da fraternidade universal, que deve conduzir qualquer projeto pastoral específico. Como segunda indicação, ele destacou também a Campanha da Fraternidade 2024, cuja temática é “Fraternidade e amizade social”, temática essa que, segundo Dom Joel, é “a base sobre a qual o mundo de nosso tempo está se organizando”. Por fim, chamou atenção para as atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora, destacando, de modo especial, as chamadas comunidades eclesiais missionárias, configurações comunitárias nas quais os vínculos humanos são explicitados e estimulados.
Dom Joel concluiu dizendo que “cabe à Igreja estar no mundo, sem ser do mundo, inserir-se em meio às pessoas, com suas alegrias e dores para lhes apresentar o mistério de Cristo e, nesse mistério, a identidade mais profunda do ser humano.”
Na quinta-feira de manhã, dia 25 de janeiro, Dom Joel Portella Amado, dando continuidade à exposição sobre o ser humano à luz da teologia sistemática, sublinhou a pessoa de Cristo como ícone do novo homem e, portanto, centro de um modelo cristão de antropologia integral.
Reconhecendo o valor da modernidade enquanto valoriza em si cada pessoa, a partir de sua perspectiva individualizante, Dom Joel chamou atenção para o fato de que não se pode deixar de reconhecer que a subjetividade não pode ser compreendida como fechada em torno a si mesma, indiferente aos outros, à natureza e a Deus.
“Essa é, a meu ver, uma das grandes contribuições que os cristãos podem e devem dar ao mundo de nosso tempo, em que a flacidez das identidades acaba por gerar o risco de identidades predominantemente não relacionais, incluindo-se aqui até mesmo experiências religiosas nas quais a subjetividade fechada é o critério, ou seja, onde a vida fraterna, em comunidade, não é um dos valores maiores.”
Padre Luís Henrique Eloy e Silva
O ser humano na Sagrada Escritura
Quem é o Ser Humano segundo a Sagrada Escritura? Foi partindo dessa questão que o padre Luís Henrique Eloy e Silva, reitor da PUC-Minas e membro da Pontifícia Comissão Bíblica, desenvolveu a sua conferência para os bispos reunidos no Rio de Janeiro para o 33º Curso para os Bispos do Brasil, no fim da manhã de terça-feira, dia 23 de janeiro.
Fazendo um breve panorama sobre a figura do homem nas escrituras, desde o relato da criação no Gênesis, passando pelo desenvolvimento na literatura profética e sapiencial, até chegar ao Novo Testamento, padre Eloy indicou que “o ser humano, mesmo sendo ‘terreno’, é fruto do projeto amoroso de Deus, seu criador, e por isso recebe o sopro da vida e se torna um ser vivo. O ser humano é guardião de uma missão especial, por ser imagem de Deus”.
O reitor da PUC Minas ressaltou em sua conferência a dupla tarefa que é conferida ao ser humano desde o Éden acerca da terra: trabalhá-la e dela cuidar. E a partir dessas duas tarefas, vinculam-se o alimento, o trabalho e os animais. O alimento surge nas Escrituras “como perene oferta do criador às suas criaturas”, enquanto o trabalho é necessário à atividade do homem para alcançar uma vida de qualidade. Também os animais surgem como ajuda para a Humanidade, fornecendo alimentação, vestuário e ajuda no trabalho. Dessa forma, é a partir da dinâmica da comunhão com a criação que o ser humano pode viver o projeto do Deus criador.
“Desse modo”, indicou padre Eloy, “a finitude e a grandeza caracterizam o ser humano conforme a visão dos autores bíblicos. Ele, reconhecido como uma criatura, não é criador de si mesmo. Ainda que ligado ao pó da terra, frágil e ameaçado de morte, possui uma relação especial e única com seu criador.”
No fim da manhã de quinta-feira, dia 25 de janeiro, padre Eloy deu continuidade ao tema já iniciado na conferência anterior, abordando sobre a família a partir dos textos bíblicos. Analisando as narrativas do Gênesis e as analogias entre o amor de Deus e o amor esponsal, o conferencista destacou que “o fato de que a instituição matrimonial seja utilizada para descrever a relação de Deus com Israel é um sinal de que ela possui em si mesma um valor intrínseco; mais uma vez é atestada a ‘semelhança’ entre Deus e a criatura humana, entre o agir divino e aquele que o ser humano é chamado a cumprir. A aliança esponsal é efetivada de modo perfeito pelo Senhor, e isso ilumina como ela deve ser vivida pelos esposos”.
Diálogo e pós-modernidade
No final da manhã de quarta-feira, 24 de janeiro, a conferência foi feita por Dom Ignazio Sanna, arcebispo emérito de Oristano e presidente da Pontifícia Academia de Teologia. Expondo o tema “Uma antropologia cristã no contexto da pós-modernidade”, o arcebispo apresentou no início uma definição do conceito de pós-modernidade, entendida como “a dissolução da síntese cultural moderna e o advento do pensamento fraco e a crise da razão”.
Passando por diversos autores que debatem sobre o tema, Dom Ignazio indicou aos bispos presentes no auditório as respostas da antropologia cristã.
“Penso que uma contribuição para enfrentar e, em certa medida, resolver esses nós antropológicos – destacou o conferencista – é dada pela concepção da antropologia cristã do homem como imagem de Deus. Esta concepção, de fato, constitui em primeiro lugar a base teórica e prática do conceito de dignidade do homem, que fundamenta e solidifica a ‘humanidade’ do homem.”
Em seguida, os bispos participaram de um diálogo com Dom José Tolentino e Dom Ignazio Sanna, que teve a participação do vigário episcopal para as Irmandades, na Arquidiocese do Rio de Janeiro, monsenhor André Sampaio, no qual puderam fazer perguntas e expor impressões acerca da temática abordada.
Na manhã de sexta-feira, 26 de janeiro, Dom Ignazio Sanna deu continuidade a sua conferência anterior, na qual abordou o tema: “A identidade aberta: o cristão e a questão antropológica”.
O arcebispo destacou a emergência da questão antropológica, que interessa à essência mesma da identidade humana, e indicou alguns fenômenos que condicionam em nossa época o processo de formação da identidade humana, como a globalização, a revolução biotecnológica e a Inteligência Artificial.
“O cristão”, disse Dom Sanna, “não pode deixar de se perguntar até que ponto a pesquisa científica que leva a uma nova cultura está autorizada a violar os limites da natureza humana, ignorando o princípio fundamental de que, se tudo é permitido para o uso da ciência pelo homem, nem tudo é permitido para o uso do homem pela ciência.”
Comunicação e desafio educativo cristão
O subsecretário nomeado do Dicastério para a Cultura e a Educação e doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, padre Antonio Spadaro, fez sua primeira conferência na tarde de quinta-feira, 25 de janeiro, quando abordou sobre “A antropologia do Papa Francisco à luz do problema educativo”, na qual afirmou que a visão do Papa acerca do homem “é sempre concreta e nasce da experiência”.
Traçando uma análise da ação do Papa Francisco desde que era arcebispo de Buenos Aires, padre Spadaro demonstrou a percepção de Bergoglio em reconhecer a referência sólida que é a antropologia a que a Igreja tradicionalmente se referiu, percebendo, porém, que o homem a quem a Igreja se dirige hoje já não é capaz de a compreender como outrora.
“O desafio educativo cristão” – apontou o conferencista – é evitar que a luz de Cristo permaneça para muitos apenas como uma recordação longínqua ou, pior ainda, que fique nas mãos de um pequeno e seleto grupo de pessoas ‘puras’: isso transformaria a Igreja numa seita”.
A segunda conferência do padre Antônio Spadaro aconteceu na manhã de sexta-feira, 26 de janeiro, quando trabalhou “Os desafios da comunicação para a antropologia”, e propôs uma pergunta: é suficiente multiplicar as conexões para aprofundar o entendimento mútuo entre as pessoas, um relacionamento autêntico? Padre Spadaro apontou para a resposta do magistério do Papa Francisco: essa comunicação global não é suficiente para superar as divisões. Pelo contrário: o mundo, hoje unido por redes, vive o paradoxo de estar dividido.
“O desenvolvimento tecnológico, se bem entendido, consegue expressar uma forma de desejo de ‘transcendência’ com relação à condição humana como ela é vivenciada atualmente”, destacou o jesuíta, que é subsecretário nomeado do Dicastério para a Cultura e a Educação.
“E isso também deve ser dito sobre o ciberespaço, sobre a Internet. A rapidez de suas conexões representa muito bem o desejo do homem por uma plenitude de relacionamentos, de conhecimento, de comunhão que sempre o ultrapassa. Em resumo: a tecnologia tem uma vocação espiritual.”
Após um momento de diálogo com os palestrantes, o arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani João Tempesta, que também presidiu a missa de manhã, encerrou o 33º Curso para os Bispos agradecendo a participação dos quase cem membros do episcopado brasileiro que estiveram no Centro de Estudos do Sumaré, exortando a que a meditação dos temas propostos possa se converter em belas iniciativas pastorais nas várias dioceses. Dom Orani indicou que já está em processo a escolha do tema do curso no próximo ano, que deve acontecer de 27 a 31 de janeiro de 2025. A análise dos dados religiosos trazidos pelo último Censo, os 1700 do Concílio de Niceia e o Jubileu Ordinário são alguns dos temas que podem permear o próximo encontro.
Fonte – Facebook – Cardeal Orani João Tempesta
Textos: Eduardo Silva
Fotos: Gustavo de Oliveira